quarta-feira, 12 de março de 2014

Sequestradora de crianças por um dia



Hoje experimentei o que é está sob a mira do olhar desconfiado, senti o que uma amiga negra diz que sente ao entrar num shopping. Quando ouvia relatos sobre ser negra/negro e ter de conviver com olhares desconfiados eu não tinha noção do que se tratava, embora pudesse  até imaginar o quanto é desconfortável, revoltante e cruel, mas conseguir ter a exata dimensão, isso eu não tinha. Não sou negra e tampouco branca, muito menos amarela, minha avó costumava me dizer que eu tinha cor de “burro quando foge”, o que seria a grosso modo, considerado o mesmo que parda e me identifico como tal, algumas pessoas até preferem me caracterizar como branca, mas isso vai depender do referencial, né mesmo? Mas reconheço que minha condição social, além das toneladas de descolorante de cabelo, clareia ainda mais um pouco minha pele. Enfim, essa é uma conversa depois vai fazer sentido, por enquanto parece uma divagação sem sentido.




Voltando ao tema; ontem mesmo conversava com uma amiga sobre racismo, privilégios e consciência racial. Roberta defendia o ponto de vista de que muitxs Negxs não se reconhecem como tal, e que usa uma tática, que segundo ela, funciona perfeitamente para suscitar o despertar para a consciência racial. Ela me falou que sempre que encontra alguém que não tem essa consciência sugere um exercício, “quer saber se você é negrx? É só você entrar num shopping ou loja chique. Se você for seguidx pelos seguranças e observada pelos clientes e vendedores você é negrx”. De uma forma bem simples Roberta tentava demonstrar a dimensão do racismo e estabelecer um link para consciência racial e toda a opressão que advém dele. Era também a partir dessa reflexão que ela colocava que não há como ser negrx e não sofrer racismo. Mas enfim, esse também não é o foco da discussão.

Mas como eu falava, lá no comecinho da conversa, pela primeira vez (pelo menos que eu me lembre) senti na pele o que é ter alguém a me olhar como se eu estivesse preste a realizar um furto, assalto, um crime ou o equivalente. Estava na sala de espera de um consultório oftalmológico (estou com uma alergia que tem feito minhas pálpebras incharem – suspeito que por conta da maquiagem – pelo menos esse foi o diagnostico) quando uma senhora negra sentou ao meu lado com sua filha – pele um pouco mais clara que a dela – de cinco anos (o motivo da exposição sobre o tom de pele de ambas ficará mais claro adiante). A garotinha havia ferido o olho durante uma brincadeira. Eu e sua mãe ficamos conversando, eu falando pra ela que não tinha filhos, mas que meu marido gostaria muito de ser pai, explicava pra ela que nunca foi meu sonho ser mãe, mas que ultimamente estava considerando a possibilidade, não com muito entusiasmo é claro. Ela me falava sobre a maravilha de ser mãe, da dificuldade que foi engravidar (por causa dos ovários policísticos), dos cuidados que dispensava a filha, já que não poderia ter outra por conta da idade avançada, que já ia fazer 40 anos (quase ri com essa declaração, mais à frente você entenderá o porquê). Era uma senhora bem humilde, mas com um apego muito grande com a filha (tanto que fazia o maior esforço para pagar o plano de saúde da criança) me contava da dificuldade que teve em chegar com a filha até a clínica, que inclusive teve de pegar um taxi do último hospital até o oftalmo. Então a perguntei onde ela morava, e pra minha surpresa, morava perto da minha casa. De pronto a ofereci carona. Continuamos conversando até que fomos atendidas e liberadas pra voltarmos pra casa.




Quando chegamos ao carro percebi que não tinha cadeirinha pra conduzir a garota. Então me senti um pouco desconfortável por ter oferecido carona e não ter como conduzir as duas. Fiquei temerosa de ser parada numa blitz e ter de pagar multa. Mesmo com receio acabei dando a carona, afinal era horário de pico e talvez não pegássemos uma. Depois que estava no banco de trás com a filha e de termos avançado um pouco na viagem, depois de termos conversado um pouco – durante essa conversa devo ter falado algo que a deixou insegura – essa senhora começou a me perguntar que caminho era aquele e por onde eu estava indo, que rua estávamos, disse, inclusive, que se visse um ônibus que fosse pra casa dela o pegaria. 
 
Então, percebi que ela estava desconfiada e com muito medo de mim. Essa senhora deveria estar achando muito estranho, uma mulher “branca”, “bem vestida”, num “carrão” dando carona pra uma mulher negra, bem humilde, sem instrução e a tratando muito bem. Confirmei minhas desconfianças (que ela desconfiava de mim. Risos) quando ela, sem mais nem menos, me falou que as pessoas perguntavam se a menina era mesmo filha dela, já que a garota era branquinha e ela negra. Bingo! Ela achava mesmo que eu ia roubar sua filha. Eu “era branquinha como sua filha”, não tinha filhos, meu marido queria muito ser pai e eu ainda havia falado para que já tinha 40 anos. Pronto! Eu não podia ter filhos e a garota passaria por minha filha numa boa, logo, era a criança ideal. Sem contar que eu cabia direitinho na descrição de uma das mulheres que roubava crianças lá pelo interior de Minas Gerais, aquelas duas mulheres simpáticas, loiras, de carro, que falavam bem... 

Fiquei furiosa, com muita raiva. A vontade que tinha era de mandar aquela mulher sair do meu carro e se virarem. Ela não parava de me perguntar qual seria nosso trajeto, que rua era aquela, se aquilo era o aeroporto, de falar que ela sabia onde estava, que conhecia todas as ruas da cidade, que ninguém a enganava, que era muito esperta... E eu só queria que ela não me enchesse muito o saco porque a minha paciência estava bem pouquinha e por mais um pouco eu mandaria ela descer do carro e deixar a menina (risos), mas era só pra dar um susto mesmo. Por mais que eu me esforçasse pra deixa-la segura mais ela fazia perguntas e falava coisas (que eu sabia não fazer o menor sentido, mas que pra ela fazia todo) que pudessem afastar da minha cabeça a ideia de roubar sua filha e larga-la num lugar qualquer, onde não pudesse se orientar. Os meus planos era deixar as duas em casa. Sabe aquele lance de empatia, de se pôr no lugar do outro, me imaginava na sua situação, com uma criança com a córnea ulcerada, andando pra cima e pra baixo, ora de ônibus, ora e gastando com taxi. Queria ajuda-la. Mas me sentia profundamente irritada com aquela desconfiança, apesar de levar em conta que ela tinha razão de se sentir insegura, afinal, não me conhecia e ainda por cima eu parecia muito com uma sequestradora de crianças, tipo a Nazaré Tedesco (da novela), quando foi interpretada pela Carolina Dieckmamn é claro (Risos). 

O que me deixava literalmente irada da vida era o fato de estar tentando ajudar e sofrer desconfiança. Acabei as deixando numa farmácia bem perto da minha casa, onde eu parei pra comprar meu remédio e ela também comprou o da garota, o lugar era bem melhor para tomarem o ônibus de volta pra casa, ficava há uns dois Km da sua casa, a mesma distância da minha casa à dela. Ela agradeceu muito a carona e eu fui embora. Mas enfim, a história me serviu de lição para muitas coisas, dentre elas;


  •  Não oferecer carona para desconhecidas (para desconhecidos jamais); 
  • Que é muito, mas muito desconfortável nos olharem como se estivéssemos prestes a roubar algo 
  •  E a não dizer para uma mãe (desconhecida) que estou à beira de não poder ter mais filhos e que meu marido quer muito ser pai...

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