sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Consciência negra pra quê?



Hoje, dia da consciência negra, uma pergunta me parece bastante pertinente. Porque precisamos de consciência negra? É fato que muita gente acredita que não existe racismo, nos acostumamos a dizer que vivemos numa democracia racial, que o país é multirracial, e que por conta da miscigenação não há como sermos racistas... Mas será mesmo que superamos os históricos desafios de cunho racistas que serviram de base para estruturar social e culturalmente a nossa sociedade? A resposta é: Não. Não superamos os alicerces escravistas que moldaram o nosso comportamento e às nossas instituições. Somos uma sociedade estruturalmente racista e rechaçamos qualquer tentativa de mudar essa realidade. E para ser mais precisa, alimentamos um grande ranço por conta dos diversos mecanismos que legitimaram os direitos do povo negro. Exemplo disso é a dificuldade que grande parte da sociedade tem de aceitar as cotas raciais, um remédio que tenta superar a distorção entre a educação formal precária proporcionada a maioria da população e a educação que parte da classe média e alta pode pagar.
A rejeição as cotas, alegando que o sistema é uma forma de segregar negras e negros, é na verdade mais uma das muitas manifestações de racismo velado. E olhe que já nas redes sociais comentários dizendo que “depois das cotas o povo que frequenta a universidade ficou mais feio e mais mal vestido”.
Apesar do estranhamento que pode causar, essas manifestações não se resumem ao racismo velado, no Brasil, há sim o racismo claro, específico e incontestável. Vejam que tem circulado nas redes sociais e nos noticiários um caso sério de racismo onde uma mulher, que alega ser funcionaria pública, escreveu uma carta com ofensas racistas dirigidas aos funcionários do Detran do Ceará que rebocaram seu carro, que estava estacionado numa vaga pra taxi.
“Dia 11 de novembro, o carro da mulher estava estacionado irregularmente em uma vaga de táxi na Rua Marcos Macedo, no Bairro Aldeota; e, por isso, teve de ser rebocado até a sede do Detran. Antes de o funcionário chegar ao pátio do órgão, a motorista já estava no local, tentando impedir a entrada do reboque. ‘Ela se meteu na frente e começou a dizer que a gente estava roubando o carro. Quando eu parei o reboque, ela veio para cima de mim e eu expliquei que o veículo foi apreendido porque estava estacionado irregularmente’, conta. ‘Dei continuidade ao meu serviço, e ela ficou me esculhambando’, acrescenta. No dia seguinte, a mulher chegou ao setor de fiscalização do órgão já com três cartas na mão, solicitando o nome do motorista do reboque para dar um presente de Natal... O trecho racista da mensagem tinha como alvo Mauro César, o motorista do reboque, com expressões como: ‘hoje tu viveria no tronco, levando chicotada nos lombos’; ‘tem inveja de mim porque sou branca, né?’; e “tu nunca será como eu”. Tribuna do Ceará.

 

Na carta ela se refere a Mauro Cesar com a seguinte descrição “o da cor da noite sem estrelas”. As ofensas racistas são contundentes e têm início a partir do trecho “Agora vou me referir ao da cor da noite sem estrelas: hoje tu vive como gente, convivendo com gente, por causa da maldita princesa  Isabel. Senão, hoje tu viveria no tronco, como teus antepassados, levando chicotadas nos lombos.”  O teor da carta pode ser conferido na imagem acima.   
 
O exemplo acima expõe apenas um caso em meio a tantos outros que sequer tomamos conhecimento, vira estatística e/ou que não se tornam caso de polícia. Mas e o que dizer quando o racismo é institucional? Quando a polícia é orientada a abordar preferencialmente negros e são exatamente os jovens negros que compõe 60% da população carcerária brasileira? Estamos falando que 60% da população carcerária, envolvendo mulheres, homens maduros e velhos, nesse universo todo, mais da metade dos presos são jovens negros. Também são eles as principais vítimas de assassinatos. Em apenas 9 anos  morreram 120 mil jovens negros, quase 3 vezes o número de assassinatos de jovens brancos. Em 10 anos, os homicídios entre os jovens brancos diminuíram 32,3% enquanto entre jovens negros aumentaram 32,4%.

Entre as mulheres as manifestações de racismo atingem outro nível. Às mulheres negras são sempre destinados os empregos mais subalternizados. Em 2009, elas representavam 61,6% do total de mulheres ocupadas no setor de trabalhos domésticos. As mulheres negras têm menores chances no mercado de trabalho, o índice de desemprego entre homens brancos é de 5,3%, enquanto o de mulheres negras é de 12,3%. Sem falar na diferença de remuneração entre as mulheres negras e homens brancos. De acordo com o IPEA (2011), enquanto que a renda do homem branco era em média de R$1491,00 a da mulher negra beirava a um terço desse valor, ficava em R$ 544,40.  Sem falar que os homens, brancos e negros, preferem mulheres brancas para manter relações duradouras. De acordo com Freitas (2014), o senso de 2010 apontou que as mulheres negras são as que menos se casam e as que estão mais propensas ao “celibato definitivo”. Em contrapartida as mulheres negras são vítimas preferenciais de estupros.

Portanto, embora negras e negros gozem de liberdade formal, “concessão” que a aboliu a escravatura há mais de cem anos, boa parte delas e deles continuam sem poder frequentar a casa grande, apesar da ascensão social de muitos negros e negras. Lamentavelmente os corpos das mulheres negras continuam sendo usados como mercadoria para entreter o senhoril, seja através das exibições de shows de mulatas pra gringos verem ou na televisão, onde a sexualização do corpo da mulher negra atinge o seu ponto alto em “Sexo e Negas”.

Então, o dia da consciência negra é necessário pra que a gente não feche os olhos para a criminalização e o extermínio dos jovens negros, para nos manifestar contra os espancamentos praticados pela polícia e contra os linchamentos em praça pública praticado pela população e cujas vítimas preferenciais são negras e negros. Linchamentos realizados nos mesmo moldes do pelourinho. O dia da consciência negra é necessário para que a gente compreenda que negras e negros não são descendentes de escravos e sim descendente de um povo escravizado pelo branco. Bem como para que a gente entenda que ser negra não é sinônimo de ser mulata ou que o corpo da mulata não é de uso público. Enfim, esse dia é também necessário para que a gente não esqueça a impagável dívida que a sociedade tem para com o povo negro. 

 

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