terça-feira, 2 de dezembro de 2014

A cultura do medo








A cultura do medo, do pavor, do horror, da dominação e do subjugo que os homens impõem a gente é tão poderosa que apenas recentemente, aos 30 e poucos anos, eu criei coragem de passar a reagir a um abuso, a um assédio no transporte público, na rua ou em qualquer lugar, ou à coação por sexo de um parceiro. Eu já perdi a conta de quantas vezes fui encoxada no transporte público, de quantas vezes entrei no ônibus e ouvi psiu psiu e era um cara batendo punheta, de quantas vezes isso também aconteceu quando eu caminhava na rua e passava ao lado de um carro e tinha um homem fazendo psiu psiu e se masturbando dentro dele, de quantas vezes eu não consegui reagir a um beijo forçado, a mão insistente de um homem nos meus peitos ou no meu sexo, depois de eu ter dito algumas vezes que não queria, de quantas vezes fui agarrada a força em festas, na rua, de quantas vezes enfiaram a mão na minha bunda ou na minha buceta enquanto eu caminhava pela cidade. Das tantas vezes, que, com 11, 12, 15, 17, 20, 27, 30 anos, fui apontada como piranha, chamada de vagabunda, de vadia, por desejar fazer sexo, por fazer sexo, por não querer fazer sexo, por querer beijar, por não querer beijar, por estar ou não estar a fim de um garoto, por causa do tamanho da minha roupa, de algum gesto, do jeito que eu dançava ou me comportava. De quantas vezes eu não tive coragem, eu simplesmente não consegui!, dizer não a uma relação sexual que eu não queria, mas coagida de diversas formas por um homem amado. Por mais de 30 anos eu senti medo, pavor, culpa, constrangimento, vergonha - eu, EU!, eu que sempre me sentia culpada e constrangida por uma coisa ERRADA que um homem fazia comigo. Por mais de 30 anos eu achei que era normal ser objetificada, eu achei, todo mundo, o tempo todo, sempre me disse, que ser mulher é isso. Se eu era mulher, então, meu papel era esse, então eu era isso.
 

Essas coisas aconteceram por TODA A MINHA VIDA. Desde que eu me entendo por gente, se agravando fortemente após a puberdade. Eu vivi essas coisas a vida INTEIRA, eu perdi a conta de quantas vezes passei por essas, e outras, situações - e eu não estou hiperbolizando. E eu sempre, sempre, sempre me senti como se o erro fosse meu, como se eu estivesse errada. Eu não sei que maldita lavagem cerebral é essa que fazem na gente, que a gente é violada, agredida, invadida e se sente culpada, constrangida, envergonhada, como se o erro fosse nosso. Eles nos violentam e ainda nos fazem sentir culpadas!

 
Agora ACABOU. A-CA-BOU. Eu morro, apanho, mas NÃO ME CALO.

EU REAJO! Não só quando é comigo, mas, também, quando vejo alguma irmã em situação de constrangimento ou perigo. Acabou o silêncio, acabou a inércia, acabou o MEDO. EU REAJO.

    Ana Paula Martins
Educadora e militante feminista

O desabafo de Ana Paula é o meu desabafo, é o desabafo de uma infinidade de mulheres que cresce achando natural ser insultada, violada, agredida e diminuída. Nos mulheres somos educadas para achar tudo isso normal, coisa de homem – insultar – e coisa de mulher – acatar –, faz parte das relações entre homens e mulheres. Essa naturalização é parte estruturante da cultural patriarcal e é através dela que se reproduz e se perpetua o sistema de dominação das mulheres. Também é através da coação, do “estupro consentido” e do assédio que os mecanismos de controle sobre os corpos femininos e sobe a liberdade das mulheres se expressam de forma sútil, mas imperativa. 
Nas sociedades patriarcais a mulher é um objeto e enquanto objeto ela está sujeita as vontades do dono ou donos (quando ela anda desacompanhada na rua), restando a nós; acatar, ceder, nos resignar e obedecer. Por mais que soem exageradas as minhas afirmações elas são facilmente constatadas, basta ver a quantidade de assédio que qualquer garota sofre na rua quando anda sozinha. 
 
Então, veja o vídeo gravado por uma garota que registrou mais de 100 comentários de assédio masculinos filmado durante uma caminhada pelas ruas de Manhattan, em Nova York. Por conta do vídeo Shoshana, a moça que aparece sendo assediada, sofreu ameaças de estupro pela internet.  Assista aqui. 
 
                                                    Longe das ruas, dentro do lar, essa objetificação assume a sua face mais cruel. É nesse ambiente, onde deveríamos nos sentir mais seguras, que nos encontramos cara a cara com nossos algozes. Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) apontam que a violência doméstica é a principal causa de lesões em mulheres de 15 a 44 anos no mundo. De acordo com o a senadora Ana Rita, o Brasil é o 7º país que mais mata mulheres no mundo. “Nos últimos 30 anos foram assassinadas 91 mil mulheres, 43 mil só na última década”. 7 em cada 10 assassinatos de mulheres são praticados por maridos. Os dados refletem exatamente aquela velha frase “Se você não for MINHA, não será de mais NINGUÈM”.
Mas enfim, assim como Ana Paula rompeu com a inércia e com o silêncio, eu também rompi e você pode romper também. Não podemos tolerar abuso, coação e violência. É difícil romper, mas não silenciar, não acatar e não se resignar diante do assédio e da violência é libertador. Sonho com o dia que cada mulher no universo se imponha, se empodere e reaja.




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