segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Vítimas de estupros - vagabundas, loucas e doentes mentais



Em conversas telefônicas autorizadas pela Justiça, o ex-médico Roger Abdelmassih, que foi condenado a 278 anos de prisão por 48 crimes de estupro e abuso sexual, cometidos contra 37 de suas pacientes, confirmou que teve relações sexuais com suas pacientes. Mas, segundo ele, eram elas que o procuravam. Trechos das gravações foram exibidas ontem durante o Fantástico.

"Passava mulher para trás constantemente, provavelmente achava que tava tudo disponível. A mulher jogava o milho e eu ia comer e aí eu levei o ferro. Você sabe que mulher é um bicho desgraçado mesmo", afirmou.
Sobre as acusações de estupros, Roger comenta.  “Elas são doentes mentais. É louca mesmo”, diz ele.
Durante as mais de sete horas de gravações autorizadas pela justiça, das quais o Fantástico diz ter tido acesso, em nenhum momento o ex-médico confessa ter cometido abuso sexual. Pelo contrário ele se diz injustiçado.
Em outro momento, ele cita até Deus. "Essas vagabundas apareceram na televisão dizendo que eu fazia isso, fazia aquilo. Nunca fiz! Eu sei quanto eu vou ter que enfrentar, aí...Até Jesus Cristo foi crucificado e era Deus".
Na conversa, Abdelmassih denomina-se "o grande comedor". "Que Deus quis quebrar o prepotente, etc, o grande metido a isso, a aquilo, o comedor. (...) É, o grande comedor, e que provavelmente achava que "tava" tudo disponível", diz outro trecho da escuta. Ig
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Vanusa Lopes
Vanuzia Leite Lopes,  da associação das vítimas de Roger, comentou as declarações do ex-médico. “[Ficamos] Indignadas. Revoltadas.  É muito difícil, porque nós fomos expostas, né? Vai ser um estigma pelo resto da vida. Eu tô indignada de ouvir ele falar essas coisas depois de tudo que eu passei.”


Dia 01 desse mês, o grupo Vítimas Unidas, formado por mulheres vítimas do ex-médico Roger Abdelmassih, e que o acusaram de estupro ou atentado ao pudor, fez um ato em frente ao Tribunal de Justiça de São Paulo, no Centro de São Paulo. As vítimas protestavam contra à tentativa da defesa do ex-médico de anular a condenação imposta em 2010. O Tribunal que iria avaliar se anulava ou não a decisão que determinou pena de 278 anos de prisão a Abelmassih por 48 ataques sexuais a 37 mulheres entre 1995 e 2008, no dia seguinte (quinta-feira, 02) acabou adiando a data da decisão.

Vítimas do ex-médico foram ao aeroporto recepcionar Abdelmassih (Foto: Lívia Machado/G1)
Maria Franco, Lana Lopes, Helena Leardini, Yvany Serebenic e Cristina Silvi foram ao aeroporto recepcionar Abdelmassih (Foto: Lívia Machado/G1)
No carro de som, Vanuzia Lopes, estilista e uma das primeiras a denunciar o ex-médico, afirma que o ato quer impedir que Abdelmassih deixe a prisão. O grupo pretendia protocolar no TJ um documento com 62 mil assinaturas demonstrando esse desejo. A manifestação estava prevista para acontecer até as 19h. Familiares de outras vítimas de violência apoiam o protesto. Marta Consoli, mãe de Bianca Consoli (jovem que foi estuprada e morta pelo marido da irmã) também participa do ato. G1
 
Vanuzia Lopes, 54, uma das vítimas de Roger Abdelmassih
Vanuzia Lopes, 54,
Participaram do ato somente outras quatro vítimas. Diante do inexpressivo número de participantes Vanuzia disse não estar surpresa com o baixo quorum do protesto. "Achava que viria sozinha. É difícil fazer um protesto de anônimas. Vítima de estupro é muito estigmatizada, tem vergonha.”
É claro que essa exposição acaba sendo negativa para as vítimas, não porque elas tenham alguma responsabilidade pelo que passaram, mas porque esse é o mecanismo usado pela sociedade para silenciar às vítimas de violência, principalmente a sexual. Impedir que a vítima de violência sexual fale sobre os abusos que sofreu é provocar a invisibilidade do processo. Essa é maneira encontrada pelo opressor para impedir que o processo de violência cesse. Ora, se a violência não existe não há porque combate-la. Se não há rostos não a vítimas, não havendo vítimas o problema não existe. 

 E como impedir que as vítimas falem? Fácil, revertendo a acusação.
. "Essas vagabundas apareceram na televisão dizendo que eu fazia isso, fazia aquilo”
  “Elas são doentes mentais. É louca mesmo”
Yvany Serebenic, uma das vítimas do ex-médico  (Foto: Arquivo pessoal )
Yvany Serebenic, uma das vítimas do ex-médico
(Foto: Arquivo pessoal )
Pesquisa realiza pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revelou que 58% dos entrevistados concordam total ou parcialmente com a premissa “se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros no Brasil”. Outra pesquisa recente, Juventude, Comportamento e DST/Aids, realizada com o acompanhamento da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e do Departamento de Doenças Sexualmente Trasmissíveis e Aids (DST/Aids) e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, revelou que 4 a cada 10 jovens, entre 18 e 29 anos, defendem de maneira total ou parcial o argumento que mulheres que se vestem de forma insinuante não têm o direito de reclamar caso sofram violência sexual.
Esses são mecanismos de silenciamento e culpabilização da vítima. As pesquisas são reveladores do pensamento mediano conversador e misógino de grande parte da nossa sociedade. Um conservadorismo que penaliza a mulher e que a deixa completamente vulnerável a toda espécie de violência. Não há como proteger a integridade física e psicológica feminina quando os julgamentos sempre vão recair sobre o comportamento feminino e a mulher em si. Há sempre o questionamento se ela estava bem vestida ou num lugar seguro quando sofreu abuso, se não houve nenhum comportamento “desviante” quando ela foi agredida, se ela não havia bebido antes de sofrer um estupro. A sociedade está sempre encontrando formas de legitimar ou invisibilizar a violência contra nós mulheres. Ás vezes pela culpabilização, às vezes por apelar paro o  descrédito e desqualificação da vítima. 
Diante da impossibilidade de Roger Abdelmassih negar os abusos e estupros, comprovado até por exame de DNA, ele recorre ao expediente de desqualificar e desacreditar suas vítimas. Atitudes que tornam ainda mais abjetos sua pessoa e seu comportamento. Entretanto, não vai ser esse discurso desqualificador e culpabilizante que vão mudar os rumos desse caso. O senhor Abdelmassih é culpado pelos estupros e abusos cometidos e ás mulheres que recorreram à Justiça são vítimas, ponto. Não há que ser dito a respeito delas senhor Roger.  Vagabundo é estuprador, é abusador é quem precisa abandonar o país para não ser preso. Louco é quem sistematicamente abusa de mulheres. Desgraçados são pessoas como você, que usam da boa fé de mulheres para abusar delas sexualmente e estupra-las. Você não chega a sequer ser uma pessoa doente, você é uma pessoa mau caráter e inescrupulosa  mesmo.

Felizmente suas vítimas não se intimidaram, não silenciaram. E apesar da sua injustificada revoltada o senhor está exatamente onde criminosos devem estar, que é a cadeia. Aliais senhor Roger, junto com suas vítimas nós mulheres estamos mudando a cultura da culpabilização e do silenciamento. Estamos revelando e denunciando as violências que nos vitimaram. Estamos mostrando a cara sim. Somos poucas, estamos tímidas, mas somos corajosas. Não vamos nos calar porque o silenciamento não nos favorece. Não vamos nos calar e nem nos esconder porque não temos motivos para nos envergonharmos. Fomos nós as vítimas. São os agressores que devem se envergonhar, se esconder e silenciar. 
A vítima tem de falar, a exposição de dramas como o estupro ainda é um processo doloroso por conta de todo o julgamento que advém dele, mas essa exposição é necessária. Precisamos falar e mostrar a cara para que a vítima de violência tenha rosto, tenha cara, não seja apenas um número numa estatística. Essa exposição deve ocorrer como forma de enfrentamento à tentativa de silenciamento e de culpabilização da vítima. Essa exposição é necessária para que haja o rompimento com a cultura de coisificação da mulher e para que outras mulheres percam o medo de serem chamadas de vagabundas, loucas e doentes mentais e denunciem a violência sexual. Essa exposição é ainda mais necessária para que o conservadorismo dessa sociedade não continue impondo o tipo de comportamento devemos adotar para que tenhamos credibilidade e legitimidade quando realizamos a denúncia de abuso ou estupro. Porque é preciso que fique claro que a culpa do estupro é sempre do estuprador e nunca da mulher.

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